A relação entre Estado e Direito, no contexto do Estado Brasileiro sob a ótica contratualista

Dentro da sociedade as leis desenvolvem papel fundamental para estruturar as relações entre os indivíduos, tornando-os sujeitos de direitos (capacidade de exigir direitos e cumprir deveres), limitando a liberdade de contratar, criando regras para a atuação dos agentes econômicos, fiscalizando as relações entre setor público e privado, inserindo limitações nas condutas dos agentes delimitando-as algumas como ilícitas e prejudiciais a continuidade da vida em sociedade. 

Como todo imperativo social o direito - assim como a moral - é resultado da evolução das relações sociais que se traduzem através de um processo legislativo as vontades dos indivíduos subordinados a um Estado soberano representados neste processo por pessoas eleitas em votações diretas ou indiretas. É neste sentido, que a Constituição Brasileira proclama que  "todo poder emana do povo que o exerce  por meio de  representantes eleitos" de tal sorte que uma lei promulgada pelo corpo político do parlamento (Câmara dos Deputados ou Senado Federal, mas, neste sentido entenda como a junção destes dois órgãos, o que forma o Congresso Nacional) de um Estado é o reflexo da vontade do organismo social. A ficção do Estado surge justamente na busca pelo controle das ações dos indivíduos, buscando regular seus interesses opostos (vontades) que insurgem da personalidade singular de cada ser humano. 

Na busca pelo bem comum o indivíduo renuncia a sua liberdade para se sujeitar ao complexo de regras que onera a vida na sociedade, simbolizado por um documento solene, modernamento conhecimento como Constituição, que representa os valores e os objetivos a serem perseguidos pelo agrupamento social. Estes ensinamentos foram fundamentais no passado para compreender o surgimento da sociedade, todavia, não foram suficientes para conceber toda a complexidade das relações humanas. Nos dias de hoje é importante buscarmos compreender a extensão no cenário brasileiro destes argumentos que são defendidos pelos interlocutores da filosofia contratualista e que ainda impera ao menos no pensamento limítrofe pseudo-político.

Thomas Hobbes defendeu no século XVIII que o surgimento do Estado pressupõe a transição de um estado de ignorância dos indivíduos marcado pela disputa desregulada das forças individuais, a guerra de todos contra todos" (Bobbio) diante da ausência de limites ao que é devido a cada um. Entretanto quando observamos o surgimento do estado brasileiro nota-se o desenvolvimento do Estado na forma de colônia subordinada a um Estado-Maior, desta forma, na chegada dos portugueses em solo brasileiro este agrupamento social deu-se em razão da  existência de uma ordem imperativa que buscando sobressair sobre este "estado de ignorância" dos indivíduos que aqui residiam, utilizou métodos reconhecidos por Max Weber de dominação carismática, utilizando-se principalmente da catequização. Assim sendo, ainda que constituindo uma realidade distante da raiz do que futuramente seria a República Federativa do Brasil, o início do Estado não ocorreu pelos esforços mútuos de pessoas destinadas a proteger interesses em comum, mas, em razão de um fluxo exploratório que enraizou na  Europa ainda no séc. XVI com o fito de encontrar territórios ricos em matéria-prima desejadas pelo comércio mercantilista da época, no que ficou conhecido como o século das grandes navegações. 

A aplicação das teses contratualista perdem seu campo de reconhecimento quando observamos que entre os indivíduos, que dão início ao pacto para a constituição da sociedade nunca estiveram em um ambiente de igualdade (real) patrimonial ou política, ou seja, em condições de estipular e de exigir as suas imposições para adentrar ao contrato social e diante desta desigualdade ocorre este fenômeno de subordinação com a leniência de todas as instituições criadas a partir do surgimento do Estado (tribunais, bancos, polícia, burocracia pública) que assumem o corpo de fiscal da justiça e perpetuam este cenário que desde o início da sociedade esteve distante da equidade (Aristóteles), pois, como dito no início deste artigo, pelo imperativo das leis estas recebem prerrogativas de regular a lógica de estruturação do corpo social perpetuando um cenário que toma forma a partir da determinações legais. Ganha margem de reconhecimento a lição deixada por Jean-Jacques Rosseau quando identificou que a sociedade civil surge com a instituição da propriedade privada e que o Estado como convenção social, tem a função de assegurar a posse da propriedade que mesmo antes pertencente a todos passou a ser de apenas um indivíduo e só fora possível a apropriação da terra, pois, havia homens pacíficos o bastante para aceitarem esta imposição.

Continuando esta análise encontramos no contexto histórico do Brasil a promulgação da Lei Áurea que mesmo com a resistência dos senhores de engenho da época - que ainda hoje estão representado pela figura de seus descendentes - na contramão do mundo e muito tarde tornou a escravidão prática ilegal no Brasil, porém, encurralou a população negra novamente a condição análoga imposta a priori, só que dessa vez de sua própria luta. Note que meses antes, a função de nutrir e preservar a existência do escravo era função de seu dono já que o "preto" juridicamente era um objeto integrante do patrimônio do coronel e a sua perda diminuiria a extensão de sua riqueza, com a abolição do regime escravagista os negros passaram a ser donos de sua vida e para sobreviver - diante da igualdade que a lei instituiu - tiveram de se submeter ao mesmo coronel que antes já o escravizara, diferentemente do passado a alimentação e a moradia não estava condicionada ao interesse do coronel e sim a troca do que ainda restava de força de trabalho para receber como pagamento da prestação alguns réis. É neste sentido, que para compreender a existência de uma lei, deve-se buscar as circunstâncias históricas em que ela foi criada. A lei dá um imperativo que impulsionado pelo sentimento social carrega toda as controvérsias sociais cumulado com os preconceitos e ideologias dos indivíduos legitimados a legislar e sendo ela a primazia da justiça, acaba perpetuando e legitimando desequilíbrios sociais que levarão século para serem curados. 
A escravidão evidencia a função do Estado como garantidor da lógica estrutural da economia, ora, legislando sobre o funcionamento da economia o parlamento delimita a forma de aquisição de valor das coisas e também determina o que vem a ser coisa dentro da seara jurídica, e nesta condição o Estado foi imprescindível para a manutenção do sistema escravagista. É cabível esclarecer para não criar novos heróis, que a libertação dos escravos teve como agente central a Coroa Inglesa, já que pela sua hegemonia bélica marítima, manteve acordos e relações estreitas durante séculos visando proteger o território Brasileiro contra as invasões de outros Estados soberanos. No ápice da revolução Industrial a Coroa Inglesa buscava novos nichos de consumidores para ofertar seus produtos produzidos em larga escala e enxergou na população escrava uma grande oportunidade de aumentar os ganhos, mas, inicialmente deveria torná-los sujeitos de direitos para que em condições iguais do indivíduo que até então detinha sua posse, pudesse comprar, dispor e negociar bens de consumo.

Nesta quimera igualitária o Brasil se tornou uma República e dali suportou contragolpes sociais culminando em sua história a elaboração de sete Constituintes que, diferentemente da proposição contratualista, formaram-se a partir de uma classe que prestigiou seus interesses para deflagar a outra parcela da sociedade que desde a proclamação da república se faziam minorias - em razão da falta de representatividade política e em consequência suas vontades raramente eram traduzidas a imperativos legais - majoritárias - pois sempre representaram quantitativamente maior número na população. 

Nas lições de Harold J. Lasky "quando examinamos os Estados modernos, verificamos que eles apresentam sempre o espetáculo de um grande número de homens obedecendo dentro de um território definido a um pequeno número de homens" e, de fato, nas representações políticas do parlamento em grande maioria se encontram representantes políticos das classes corporativas. No Brasil este contexto é traduzido pelos parlamentares financiados em suas campanhas públicas eletivas pelas grandes empreiteiras atualmente investigadas por supostos crimes contra o erário, nesta relação de dependência congressistas utilizam de suas prerrogativas constitucionais para elaborar projetos de lei que defendam os interesses de seus financiadores e assim concentram os atos políticos em favorecimento de uma minoria privilegiada. É nesta lógica, que o Estado e o Direito se torna um instrumento de poder perpétuo sobre a população média, já que no cerne da produção legislativa há a atuação de agentes que buscam manter seu domínio econômico sobre a sociedade, já para os enriquecidos conglomerados empresariais financiadores e dependentes do Estado é necessário encontrar segurança em suas operações para garantir o retorno do capital empenhado na atividade, a lei exerce esse papel.


Deste raciocínio retornamos ao início deste artigo onde tratamos do processo de criação e do papel de uma lei dentro do escopo estatal, propondo uma análise além das disposições legais, sobretudo analisando os impulsos sociais que convalidam a elaboração do texto legal. Assim sendo em nosso país a classe política dominante é orientada por uma ideologia que não representa a realidade majoritária da população já que os próprios parlamentares vêm de um meio ambiente elitizado ou por defenderem interesses particulares no governo (patrimonialismo), todavia, é necessária esta ideologia para perpetuar o domínio da população desprovida de recursos e marginalizada pela falta de investimentos do Estado buscando a diminuição desta desigualdade que prestigia dominação ideológica. A estrutura do Estado é viciada no que tange a sua formação não ser resultado de um consenso de interesses opostos, há materialmente a imposição de apenas um interesse daqueles que dispõe de meios de coagir as necessidades da minoria majoritária, massificando ideologicamente a necessidade destes imperativos legais a pacificação (existência) e continuação do Estado, porém, tornando a minoria não representada vítima do processo de que não participou. 

Neste viés, a estrutura do estado foi imposta a uma parcela populacional despossuída de representatividade capital e política em detrimento dos interesses de um pequeno grupo que através de invenções institucionais instituíram a necessidade da elaboração de leis, da burocracia, que, embora seja imposta a todos, sua aplicação prática está restrita a uma realidade distinta da sociedade. O direito toma forma a estrutura social que o institui legalizando toda a sua lógica de existência e garantido a permanência dos indivíduos no organismo social através de seus mecanismo de repressão e principalmente sob a égide da legalidade.

Embora estas teses contratualista numa análise crítica não encontre campo material para a sua aplicação, seus ensinamentos ainda hoje são utilizados para justificar a necessidade de redução do dirigismo do Estado numa sociedade institucionalmente desigual, para tecer a meritocracia nas atividades públicas, para fundamentar a pobreza, para fugir da compreensão do preconceito institucional e no contexto contemporâneo representa a grande concepção conservadora da sociedade e aversão ao iluminismo que nos deveria conduzir rumo ao futuro.

Reprodução: Observar e absorver - Eduardo Marinho






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